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Legislação urbana e a produção imobiliária informal – Parte 2


por Pedro Henrique Negreiros

Na primeira parte deste artigo, tratei das principais causas da produção imobiliária informal, que tem origem na dificuldade de acesso de grande parte da população ao mercado formal, dificuldade essa, que possui contribuição da própria legislação urbana. Nesta segunda parte, falarei sobre as possíveis soluções, com exemplos de cidades que tem conseguido lidar bem com a questão habitacional.

Conforme dito anteriormente, o problema da legislação, neste caso, é que ela cria uma barreira entre quem consegue acessar o mercado formal e quem não consegue. Isso acontece a partir de dois tipos de restrições que as cidades acabam fazendo: uma é pela limitação artificial da oferta de imóveis e a outra, ao exigir um nível mínimo de qualidade relativamente alto para um imóvel estar regularizado.

Em outras palavras, a legislação urbana controla apenas a cidade formal, como se a informal não existisse. A solução, portanto, passa por um amplo processo de revisão regulatória sobre a produção imobiliária e sobre o que consideramos moradia adequada, sem fechar os olhos para a realidade de quem vive na informalidade, não por opção, mas por necessidade.

Atuação pela vocação

Se a regulação pelo setor público sobre a produção imobiliária é alta, a atuação deste no provimento de infraestrutura e equipamentos urbanos deixa a desejar. O começo de tudo deve ser, portanto, o entendimento da atuação dos setores público e privado naquilo que cada um tem condições de fazer melhor.

É muito comum recorrermos ao Estado quando pensamos em habitação. Mas quem está constantemente identificando – pela própria necessidade de venda – onde as pessoas querem morar, que produto atende a cada público, qual é o preço que as pessoas estão dispostas a pagar, é o setor privado. Sempre que o setor público tentou ocupar esse lugar, falhou.

Por outro lado, o setor privado nem sempre estará disposto a diminuir seus lucros em função da segurança dos usuários ou da proteção ao meio ambiente (apenas para citar dois exemplos), se não houver algum tipo de regulamentação sobre suas atividades. Além disso, não fornece infraestrutura, nem realiza processos de regularização fundiária.

Fica claro, portanto, qual é a vocação de cada um.

O urbanista Anthony Ling fez uma série de publicações sobre a urbanização de Tóquio no blog Caos Planejado[i], onde mostra que a cidade soube lidar bem com essa questão. De acordo com ele, por ter sofrido muito com guerras e desastres naturais, os japoneses sempre tiveram a noção de que é difícil estabelecer um padrão muito alto para as moradias. Então, esses padrões sempre foram muito baixos: há, desde muito tempo, uma legislação relacionada a incêndio, promovem acesso exemplar à infraestrutura, mas se as pessoas preferirem viver em casas extremamente pequenas, privilegiando outras qualidades, isso nunca foi um problema para o governo. Ao longo do tempo, por causa do crescimento econômico, houve uma melhoria natural das habitações, sem a necessidade de uma lei para isso.

A nossa política habitacional, assim como a de Tóquio, deveria ter um foco no que o setor público tem condições de fazer e no que ele deve ser muito bom fazendo. Ou seja, focar em infraestrutura, em saneamento, em espaço público e, principalmente, em criar acesso para todos.

No entanto, as discussões dos nossos planos diretores muitas vezes são sobre minuciosidades do que é considerada área computável, área mínima de apartamento, recuos etc. Além de tornar os processos de aprovação de projetos mais demorados – o Doing Business,  estudo do Banco Mundial que mede o ambiente de negócios em vários países, classificou o Brasil em 175º de 190 na facilidade de se obter um alvará de construção[ii] – chega a ser incoerente isso ser prioridade onde milhares de pessoas moram em habitações informais, em zonas de risco ou em áreas sem saneamento.

Como bem pontou Ling[iii]: “as pessoas estão levando duas horas para ir e voltar do trabalho e a discussão é se a sacada tem x metros e se o recuo tem que ser de dois ou três metros”.

Em resumo, o setor público interfere demais nos espaços privados e menos do que deveria nos espaços públicos. Com a compreensão das prioridades e de onde cada setor é melhor atuando, fica mais fácil fazer a revisão regulatória sobre a produção imobiliária para desfazer as restrições ao mercado imobiliário formal.

Mais liberdade para ofertar moradias

Alain Bertaud, pesquisador da Universidade de Nova York e autor do livro Order Without Design: How Markets Shape Cities, compara a acessibilidade à moradia com alimentação. Segundo ele, não se alimenta um faminto apenas determinando que todos comam duas mil calorias por dia. É preciso fornecer mais comida. Da mesma maneira, se quisermos que todos tenham acesso à moradia, não basta uma lei que determine o tamanho das unidades, é preciso aumentar a produção de moradia[iv].

Novamente citando Tóquio, a cidade, com sua densidade e liberdade para construir, é quase sete vezes mais acessível que São Paulo[v] (baseado no múltiplo de preço de cada cidade, que divide o preço médio dos imóveis pela renda média anual nas mesmas).

Aqui no Brasil, a relação entre liberdade para construir e acessibilidade à moradia não é diferente. Neste estudo[vi], Anthony Ling mostra que, entre as cidades brasileiras analisadas, a que possui a menor razão Preço/Renda é Goiânia, que detém uma das menores restrições à construção de nova oferta de moradia do país.

Outra cidade que merece destaque é Hong Kong, que além de dar mais liberdade para novas construções, publica mensalmente um relatório, onde informa os preços imobiliários, os tempos de deslocamento de uma região para a outra, entre outras informações. Este tipo de gestão urbana, baseado em indicadores e também visto em Singapura, torna o planejamento menos normativo e mais contínuo. Assim, ganha-se em eficiência no provimento das necessidades urbanas, incluindo habitação, com uma divisão mais saudável das atuações dos setores público e privado.

Vale ressaltar, por fim, que a revisão da legislação urbanística que falo não exclui a possibilidade (e necessidade, especialmente para o curto prazo) de programas habitacionais. Apenas que o caminho para melhorar verdadeiramente o acesso à moradia é tornar o mercado imobiliário mais livre e, consequentemente, mais acessível.

[i] https://caosplanejado.com/dos-samurais-a-segunda-guerra-mundial/

[ii] https://portugues.doingbusiness.org/pt/data/exploretopics/dealing-with-construction-permits

[iii] http://www.ihu.unisinos.br/590111-gestao-urbana-e-o-desafio-de-juntar-a-cidade-formal-e-a-informal-entrevista-especial-com-anthony-ling?fbclid=IwAR2cvTPbYbRVFMLozBaijlrueuoKsicYqzrta_xbRo7SR1hGwX0gUfCZg58

[iv] https://www.citylab.com/design/2018/12/alain-bertaud-order-without-design-urban-planning-housing/577858/?utm_medium=offsite&utm_source=google&utm_campaign=newsstand-design&fbclid=IwAR1WYazPhWcewnq-gm-0VSsNpbMji-gw0RuY_YoEG_gtERJhMeM34Tv78Kk

[v] http://www.demographia.com/dhi.pdf

[vi] https://caosplanejado.com/quais-sao-as-cidades-brasileiras-com-moradia-mais-acessivel/

 

Pedro Henrique Negreiros é arquiteto e urbanista.

Os conteúdos e as opiniões aqui publicados são de inteira responsabilidade dos seus autores. O Sistema FINDES (IDEIES, SESI, SENAI, CINDES e IEL) não se responsabiliza por esses conteúdos e opiniões, nem por quaisquer ações que advenham dos mesmos.

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