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MaaS é a transformação digital dos transportes?


por Matheus Oliveira

Parte II – Mobilidade como um serviço: De quem? Para quem? E com quem?

Nota do autor: O presente artigo tem o objetivo de discutir a transição tecnológica dos sistemas de transporte público urbano a partir da introdução dos sistemas de Mobility as a Service e apontar as oportunidades para a construção destes sistemas nas cidades brasileiras. Para tal, o presente artigo foi dividido em duas partes. Na parte I – a revolução tecnológica nos transportes e os desafios para os próximos anos foi abordada a mudança emergente no horizonte tecnológico dos sistemas de transporte público no Brasil e no mundo, os problemas e oportunidades apresentadas pelo surgimento dos novos serviços de transporte a partir da dimensão de melhor servir o consumidor final. Esta segunda seção trata os possíveis caminhos a serem trilhados no futuro e as oportunidades para os operadores de transportes já estabelecidos no mercado e potenciais entrantes.

Yuval Harari (autor do livro Sapiens) no seu livro mais recente, 21 Lições para o Século 21, descreve que se voltássemos 100 anos atrás encontraríamos três ideologias políticas (Fascismo, Socialismo e Capitalismo) disputando a hegemonia geopolítica mundial. A partir desse ponto, se avançarmos 30 anos encontraríamos, por sua vez, apenas duas ideologias (Capitalismo e Socialismo) e se avançarmos mais 30 anos apenas uma (Capitalismo) que, nos dias de hoje, já começa a se fragmentar através de falhas estruturais de concentração de renda e de sustentabilidade ambiental e política.

Os transportes também passaram por uma transformação semelhante, se olharmos para a organização produtiva da mobilidade urbana nos últimos 100 anos, vimos a decadência de experiências de gestão e de operação de transportes por empresas públicas, a emergência de sistemas desregulamentados (livre entrada) e, finalmente, o surgimento dos sistemas de concessão pública para a operação privada. Tal como o capitalismo pós-queda do muro de Berlim, quem estudou esse processo durante os anos 90 acreditou que o sistema de licitações, por concessão, da operação dos sistemas de transporte coletivo havia dominado o debate acadêmico, como a realidade da maioria das cidades do mundo.

No entanto, as semelhanças não param por aí, como vimos no texto anterior, a entrada de novos agentes operadores de outros sistemas de mobilidade, para além do tradicional transporte coletivo, começam a evidenciar as fraturas do sistema, até então hegemônico. Não é preciso um estudo profundo sobre a lógica do transporte público urbano para ver que estamos a frente de um modelo que sobrevive apenas por causa dos contratos e dos modelos de financiamento definidos por lei (no caso do Brasil, o vale transporte e o direito exclusivo a prestação do serviço público).

O problema é que a pior notícia não é essa. A pior notícia é que, do lado dos operadores, não se vê reação frente a perda constante de clientes que trocam o transporte público (lento, caro e ineficiente) pelo automóvel particular. Ou pior, vê-se uma atitude de negação através do encarecimento das tarifas e dos cortes de serviços, respaldada pelos contratos de concessão das principais cidades brasileiras e do mundo. Em outras palavras, temos um paciente com câncer de pulmão avançado, mas que se nega a mudar o seu comportamento porque acredita que a fumaça do cigarro mata as células cancerígenas.

Onde estamos a falhar?

Em primeiro lugar, não é preciso ficar desesperado com a emergência dessas falhas estruturais. A história da indústria dos transportes mostra que esses momentos são fundamentais para a emergência de novas experiências contratuais. Por exemplo, o processo de desregulamentação do sistema de ônibus na Inglaterra apenas aconteceu após a falência das empresas públicas no fim dos anos 80. Quando isso aconteceu, essa experiência abriu espaço para a construção de um modelo de entrada regulamentada de operadores que viria a ser base para grande parte dos contratos de concessão no Brasil e no mundo.

Voltando ao nosso paciente, é preciso entender que os contratos de concessão nasceram a partir da percepção de falhas (sim, sempre elas) nos modelos de livre entrada de operadores. Isso acontece porque os sistemas de livre entrada tendem a criar uma super oferta de serviços (financeira e espacialmente) insustentável nas linhas mais procuradas e no abandono das linhas mais vazias.

Para tentar uma solução híbrida entre os modelos puramente públicos e a livre entrada, o sistema de concessões foi criado com a proposta de criar uma reserva do direito de prestação de serviço, a um ou mais operadores, para garantir o bom funcionamento operacional do sistema de transporte ao mesmo tempo que estabelecia um processo de competição, por esse direito, como forma de incentivar a escolha do melhor serviço. Ou seja, sonhávamos com um jogo de cavalheiros em que valia a competição para saber quem entraria, mas uma vez dentro cada um cuidava do seu espaço.

MaaS será o fim dos contratos de concessão?

Já falamos sobre o que é MaaS e como esses novos serviços de mobilidade começam a nascer diariamente nas principais cidades do Brasil e do Mundo. Já sabemos que estes serviços nascem da proposta de reinventar a mobilidade e de transformá-la em um serviço desenhado para promover o acesso de pessoas aos produtos e serviços distribuídos no espaço urbano.

Em relação ao cenário anterior, a entrada desses novos serviços já mostrou que qualquer reserva de mercado também começa a ser ameaçada pelas novas tecnologias. No último texto, mencionamos o caso da UBER, que entrou independente de toda a regulamentação que protegem os permissionários do táxi. O caso da UBER já mostra que é quase impossível, para o estado ,controlar a entrada de serviços distribuídos em plataformas digitais, mas, esse é apenas o começo.

Isso porque os serviços que surgem todos os dias não necessariamente nascem para operar em direta competição com o transporte regulamentado como foi no caso da UBER com os táxis. Outros modelos de negócios podem tornar algumas viagens obsoletas ou desnecessárias.  Por exemplo, os serviços de entrega de comida a domicílio, o compartilhamento de bicicletas e patinetes elétricos também estão a substituir viagens que hoje fazemos de ônibus, de táxi ou de metrô.

Esse cenário encaminha uma resposta positiva para a questão apresentada no início dessa sessão, mas leitor atento começa a se perguntar:

Voltaremos então para a livre entrada? E os problemas que já havíamos identificados?

Voltar a errar o mesmo erro só porque não encontramos uma melhor opção não me parece uma boa solução. Precisamos pensar para além do óbvio. O estado não é mais capaz de garantir legalmente uma estrutura de mercado para o setor de transportes? Então a resposta deve começar por entender quais são os outros elementos (não necessariamente apenas legais) que podem organizar esse mercado e garantir uma entrada organizada de novos participantes.

Bom, como disse no primeiro texto, aqui começa o espaço da experimentação e da inovação. Ainda não existem respostas certas, mas alguns elementos já podem ser considerados como influentes na construção desses modelos de regulamentação de mercado pós-MaaS. Em suma, acredito que estruturação já está a dar os primeiros passo em três linhas: informação, participação pública e serviços mínimos.

A começar pela informação, acredito que o papel do agente regulador dos transportes acontecerá através da capacidade de coleta, de tratamento e de distribuição de informações sobre a cidade. Isto porque, embora os operadores de MaaS tenham bastante informação sobre os próprios serviços, os dados de toda a cidade e dos demais serviços operantes na cidade são de alto valor e difícil acesso fora dos domínios da empresa. Atualmente, esses dados ainda são tratados como um tesouro a ser guardado a sete chaves e é, por isso, que acredito que será parte do papel do agente regulador dinamizar um sistema de compartilhamento de dados como forma de organizar a relação entre operadores de serviços de transporte nas cidades.

Em segundo lugar, está a dimensão da participação pública. O estado fundamentalmente deve estar respaldado na escolha das pessoas. Compreendo que este valor deve ser resgatado de forma que o agente regulador consiga criar canais de decisão, de ouvidoria e de planejamento que coloquem a população em contato direto e estruturado com os operadores e potenciais entrantes.

Por fim, considero que o agente regulador também deverá ter um papel fundamental na organização dos serviços mínimos e na garantia de uma oferta equitativa do transporte. Não esqueçamos que as licitações têm hoje um papel de garantir a oferta de transporte não apenas orientada pela função financeira, mas com uma responsabilidade social. É preciso garantir que os novos serviços também contemplem esta dimensão. Ao meu ver este terceiro ponto se apresenta como a proposta mais desafiadora nas atuais circunstâncias. No entanto, a experiência europeia com os processos de inovação social mostra que o desenvolvimento de respostas para essas franjas operacionais não é impossível, mas que pelo contrário dependem apenas de um novo olhar para se tornarem sustentáveis.

Em suma, vejo que esses três pontos representam alguns dos pilares para a nova estrutura da regulação de sistemas de transportes. Repito, mais do que teoria, é preciso experimentação. Fazer, acertar e errar, aprender e melhorar.

 

Matheus Oliveira é professor adjunto da Universidade Federal do Rio de Janeiro e doutor pelo programa MIT-Portugal em sistemas de transporte.

 

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