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O saneamento básico e os desafios municipais: aspectos regulatórios iniciais


por Mayara Bertolani

O investimento em saneamento é uma ação de prevenção e proteção da vida humana e enquanto isso não for difundido não alcançaremos a universalização”. Foi com esta frase que finalizei um artigo neste blog, em outubro de 2019.

Desde então, ocorreram algumas mudanças no cenário econômico nacional, como a aprovação do Novo Marco Legal do Saneamento Básico, em junho de 2020, sancionado no mês seguinte e regulamentado em dezembro. Neste mesmo período, o cenário incerto gerado pela pandemia da Covid-19 impactou fortemente a atividade econômica nacional.

Ainda há muito o que ser construído em termos de regulação no setor, mas, durante a pandemia, ficou ainda mais evidente que o acesso à água é algo desigual no Brasil, uma vez que muitas pessoas não podem garantir uma prática tão simples, mas essencial, como lavar as mãos.

Além disso, segundo dados do SNIS (2019), 45,9% da população não tem acesso à rede de esgoto e 16,3% vive sem água tratada. Ou seja, aproximadamente 35 milhões de pessoas não têm acesso à água potável e quase 100 milhões não são contemplados com coleta dos esgotos.

Tendo em vista que o saneamento básico engloba quatro grandes serviços (distribuição de água potável, coleta e tratamento de esgoto, drenagem urbana e coleta de resíduos sólidos), o déficit neste setor tem ligação direta com a saúde. Consequentemente, impacta na qualidade de vida do cidadão, no desenvolvimento socioeconômico de uma localidade e no meio ambiente. Então, por que ainda vivemos em um país com serviços de infraestrutura de saneamento básico tão atrasados?

É evidente que a resposta não é simples, não é fácil e não é única. Faltam recursos, investimentos[2] e, sobretudo, a criação de um ambiente de negócios favorável para atrair investidores e empresas dispostas a construir, em sinergia com o setor público, projetos de saneamento que sejam eficazes, gerando benefícios para todos os cidadãos[3].

Esse avanço perpassa também pelo engajamento da população em buscar informações, em cobrar melhorias nos serviços oferecidos, não desperdiçar água, não jogar lixo nas ruas e educar as próximas gerações. Para compreendermos melhor este desafio, faz necessário entender algumas questões inerentes aos serviços de saneamento básico, tais como titularidade, prestação, regulação[4] e empresas, de acordo com a Lei nº 14.026 de 15/07/2020, que atualiza o marco legal do saneamento básico.

i) Titularidade

O Novo Marco Regulatório do Saneamento Básico reafirma a competência dos municípios em relação aos serviços públicos intrínsecos ao saneamento básico. Nos casos em que o marco regulatório reconhece a titularidade dos serviços públicos aos Estados (serviços de interesse comum), ainda assim tal titularidade será exercida em conjunto com os municípios para compartilhamento de informações e instalações operacionais.

ii) Prestação do serviço

Os municípios poderão optar por prestarem-no diretamente, com a outorga de tais serviços a entidades interfederativas (consórcios públicos) ou de sua administração pública indireta ou, por fim, por delegação da prestação dos serviços públicos a terceiros.

No caso de delegação, passa a ser obrigatório o instrumento da concessão, inclusive por meio de PPP’s, após prévio processo licitatório, ficando vedada a adoção de contrato de programa (ferramenta muito utilizada no passado para a delegação dos serviços municipais de saneamento básico a estatais estaduais), convênio, termo de parceria ou outros instrumentos de natureza precária, ressalvados os contratos de programa em vigor, até o decurso de seus respectivos prazos.

Em suma, o Novo Marco Regulatório torna obrigatório que os estados e os municípios promovam a abertura de um processo licitatório para qualquer contratação de serviço de saneamento, abrindo caminho para a ampliação da participação da iniciativa privada no mercado.

A nova legislação também permite a celebração de contratos dos serviços em bloco, agrupando cidades, de modo que municípios vizinhos poderão integrar o mesmo processo licitatório. A regionalização torna os blocos de municípios mais atrativos para os investimentos privados. A nova legislação obriga que os contratos em vigor sejam revisados (de programa ou de concessão) para incluírem metas de universalização, bem como para que seus atuais operadores demonstrem condições econômico-financeiras para alcançá-las.

iii) Regulação

O Novo Marco impõe que o serviço seja necessariamente regulado por entidade de natureza autárquica dotada de independência decisória e autonomia administrativa, orçamentária e financeira, podendo haver, inclusive, a delegação de tal função regulatória a entidades reguladoras de outros municípios ou estados.

Além disso, para evitar a insegurança regulatória, o Novo Marco Regulatório atribuiu à Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico, a instituição de normas de referência. A regulação e fiscalização do setor será definida pela ANA, que terá como tarefa a centralização e a uniformização da regulação do setor de saneamento, principalmente no que tange às tarifas a serem cobradas dos consumidores de serviços.

iv) Empresas

Podemos dividir em três tipos as empresas de saneamento básico: empresas municipais, empresas estaduais e empresas privadas.

  • Empresas Municipais

Segundo o SNIS 2019, 25,7% dos municípios brasileiros são atendidos por prestadores locais públicos. Este é o segundo segmento mais utilizado no Brasil. Nesta modalidade, há dois tipos de gestão: a direta e a indireta. Na administração direta, o poder público, ou seja, a prefeitura, assume diretamente, por intermédio dos seus próprios órgãos, a prestação dos serviços, caracterizando uma gestão centralizada. Neste modelo, a gestão é feita por intermédio de um Departamento Municipal, criado por uma lei de reorganização da administração pública.

Na administração indireta, o poder público geralmente transfere a execução dos serviços para autarquias[5], para entidades paraestatais, instituídas sob a forma de empresas públicas ou sociedades de economia mista, ou, ainda, concede os serviços para empresas privadas, caracterizando, em todos os casos, uma gestão descentralizada (FUNASA, 2003).

  • Empresas Estaduais

Nesta modalidade pode-se ter um único prestador dos serviços básicos para vários municípios, sendo eles próximos ou não. Para isso, é necessário dispor de uniformidade de fiscalização e regulação dos serviços (inclusive de remuneração) e compatibilidade de planejamento.

A prestação de serviço regionalizada pode ser exercida por órgão, autarquia, fundação de direito público, consórcio público, empresa pública, sociedade de economia mista estadual ou empresas a que se tenham concedido os serviços[6]. De acordo com os dados do SNIS 2019, esta modalidade atende 72,0% municípios, constituindo-se como o maior segmento no setor.

  • Empresas Privadas

No Brasil, o segmento privado tem apenas 5,2% de participação no saneamento. Apesar de atender a uma pequena parcela dos municípios brasileiros, as concessões privadas de saneamento têm mantido historicamente uma média igual ou superior a 20% do total investido pelos operadores no setor, segundo os dados do estudo Panorama da Participação Privada no Saneamento 2020”, divulgado pela Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (ABCON).

No Espírito Santo, por exemplo temos presente os três tipos de empresas explicadas acima administrando os serviços de saneamento nos municípios[7], conforme figura abaixo:

Figura 1 – Operadores de saneamento básico no Espírito Santo

Fonte: SNIS (2019). Elaboração própria.

E, qual o melhor modelo de negócio para o saneamento básico? Esta é outra pergunta complexa e que não há resposta única, pois depende de vários critérios, como, por exemplo, a densidade demográfica da localidade, a renda per capita e a rede já instalada.

No Brasil, a solução para o saneamento transcorre por modelos híbridos, os quais a prestação pública dos serviços, a concessão plena e as parcerias público-privadas (PPP) são complementares, de acordo com as características da área em que o serviço será prestado.

A expectativa é de que o marco do saneamento aumente a segurança jurídica dos investidores, um dos mecanismos para atrair investimentos privados básicos para o setor, além de estabelecer metas de qualidade e cobertura dos serviços.

Outro ponto importante é sobre os chamados contratos de programa, em que permitiam a dispensa de licitação pelo prefeito ao contratar estatais. Ou seja, não era necessário um processo de concorrência aberto, em que várias empresas (públicas ou privadas) concorriam pela gestão da rede de água e esgoto.

Com o Novo Marco todos os contratos que entrarem em vencimento terão de passar por um processo de concorrência. Essa regra passará por um período de transição, com validade apenas a partir de março de 2022. Até esse período, essas companhias poderão renovar contratos por mais trinta anos, com a condição de que comprovem a capacidade econômico-financeira para realizar a universalização dos serviços até 2033, como está estabelecido no Plano Nacional de Saneamento básico.

Muito além de escolher o melhor modelo de prestação de serviço para o saneamento básico – tendo em vista que não há um melhor, mas sim um que se adapta melhor –, o fundamental é a garantia do cumprimento das obrigações previstas em contrato, para que ocorra, de fato, o fim dos “lixões” e a universalização do saneamento, gerando qualidade de vida para a população, prevenção de doenças, redução dos custos em saúde e preservação do meio ambiente.

[1] A abertura de concorrência ao setor privado para participar das concessões é o ponto mais controverso do Marco Regulatório do Saneamento. Até então, a oferta dos serviços de saneamento era realizada majoritariamente por empresas públicas. Neste sentido, as críticas consistem na forma como a legislação foi construída (para alguns, sem a devida participação das partes interessadas) e também sobre o papel atribuído ao setor privado e seus possíveis desdobramentos. Não é objetivo deste artigo entrar neste debate técnico.
[2] Estudo do Trata Brasil mostrou que os valores de investimentos necessários à universalização pelo Plano Nacional de Saneamento Básico (PLANSAB) não foram atingidos em nenhum ano desde sua edição. Em 2014, ano com maior investimento total em água e esgoto, foram investidos (em valores atualizados) R$ 14,9 bilhões, ou seja, 57% do necessário pelo Plano. Já entre 2014 e 2018 houve redução de 12,3% nos investimentos totais em água e esgoto no Brasil. O nível de investimento em abastecimento de água no ano de 2018 foi de R$ 5,7 bilhões, 7,1% inferior ao investimento em 2014. No mesmo período, o investimento em abastecimento de esgoto regrediu 30,9%.
[3] https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2021/03/o-saneamento-alem-do-basico.shtml.
[4] Além da legislação do Novo Marco Legal do Saneamento Básico, utilizamos como fonte o seguinte artigo: https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/saneamento-basico-e-os-municipios-e-agora-prefeito/.
[5] As autarquias são entes administrativos autônomos, criados por lei específica, com personalidade jurídica de direito público, patrimônio próprio e atribuições outorgadas na forma da lei, tendo como princípio fundamental a descentralização. Diferentemente dos departamentos, possuem total autonomia jurídica, administrativa e financeira, competindo-lhes em geral exercer todas as atividades relacionadas à administração, à operação, à manutenção e à expansão dos serviços de água e esgoto (FUNASA, 2003).
[6] De acordo com a Lei nº 11.445 de 05/01/2007 (recentemente alterada através da Lei nº 14.026 de 15/07/2020).
[7] O próximo texto será com foco na situação do saneamento básico no Espírito Santo.
Referências
ABCON. Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto. Panorama da Participação Privada no Saneamento – 2020. Disponível em: <https://www.abconsindcon.com.br/wp-content/uploads/2020/08/Panorama2020-baixa-FINAL.pdf>.
BRASIL. Fundação Nacional de Saúde. Manual de orientação para criação e organização de autarquias municipais de água e esgoto. 2. ed. – Brasília: Funasa, 2003. Disponível em: <http://www.funasa.gov.br/documents/20182/38564/Manual+de+orienta%C3%A7%C3%A3o+para+cria%C3%A7%C3%A3o+e+organiza%C3%A7%C3%A3o+de+autarquias+municipais+de+%C3%A1gua+e+esgoto+2003.pdf/93a50383-9f9d-48c7-bdde-7ddb4beb62fd>.
_________. Lei Federal nº 11.445, de 05 de janeiro de 2007. Estabelece diretrizes nacionais para o saneamento básico. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/lei/l11445.htm>.
_________. Lei Federal nº 14.026, de 15 de julho de 2020. Atualiza o marco legal do saneamento básico. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/l14026.htm>.
SNIS. Sistema Nacional de Informações Sobre Saneamento. 2019. Disponível em< http://www.snis.gov.br/>.
TRATA BRASIL. Cenário para Investimentos em Saneamento no Brasil após a aprovação do Novo Marco Legal. São Paulo, novembro de 2020. Disponível em: <http://www.tratabrasil.com.br/images/estudos/Relato%CC%81rio_Completo.pdf>.

Mayara Bertolani é Mestre em Economia pela UFES e Analista do Ideies.

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